A insolvência pessoal do casal ocorre quando ambos os cônjuges, em conjunto ou de forma individual, se encontram numa situação de sobre-endividamento que inviabiliza o pagamento regular das suas dívidas. Este cenário é particularmente sensível, pois envolve a partilha de responsabilidades entre duas pessoas e, frequentemente, a existência de património comum.
Em Portugal, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) oferece soluções para estas situações, mas cada caso depende do regime de bens adotado no casamento e das dívidas efetivamente contraídas por cada cônjuge. A seguir, analisamos como funciona a insolvência pessoal do casal, que efeitos tem no património comum, e quais as principais regras legais que se aplicam.

1. Conceito de Insolvência Pessoal do Casal
1.1. Sobre-Endividamento Familiar
Quando duas pessoas casadas contraem dívidas que excedem largamente a sua capacidade de pagamento (ou não conseguem honrar as obrigações a tempo e horas), pode emergir a hipótese de “insolvência pessoal do casal.” Isto pode resultar de diversos fatores:
- Perda do emprego de um ou de ambos;
- Despesas médicas inesperadas;
- Taxas de juro elevadas em vários créditos;
- Má gestão financeira e ausência de planeamento orçamental.
Embora cada cônjuge seja, em princípio, responsável pelas suas próprias dívidas, o regime de bens pode expandir essa responsabilidade ao outro, dependendo da comunhão ou separação patrimonial. Se a soma total das obrigações ultrapassar as possibilidades de pagamento, ambos podem requerer a declaração de insolvência pessoal num processo comum, ou em processos separados mas interligados.
1.2. Enquadramento Legal
O CIRE não distingue especificamente a “insolvência pessoal do casal,” mas permite que um devedor casado inclua no seu processo o conjunto de bens que lhe pertencem (incluindo a meação em comunhão de bens). Assim, se ambos os cônjuges estiverem insolventes, podem ser chamados a requerer insolvência conjunta ou separada, consoante se verifique ou não um interesse convergente na liquidação do património. Em certos casos, o tribunal pode ordenar a apensação dos processos para simplificar a gestão e atribuição dos bens e dívidas.
2. Regimes de Bens e Impacto na Insolvência
2.1. Comunhão de Bens
Em Portugal, existem diferentes regimes de bens que determinam até que ponto o património é comum ao casal:
- Comunhão Geral de Bens: Todo o património anterior ao casamento e adquirido posteriormente se torna comum, exceto bens por doação ou herança.
- Comunhão de Adquiridos: Apenas os bens adquiridos depois do casamento são comuns; os bens anteriores permanecem como património próprio de cada cônjuge.
- Separação de Bens: Cada cônjuge mantém para si o que lhe pertencia antes e depois do casamento, sem partilha.
Em casos de comunhão de bens, as dívidas contraídas por um cônjuge podem recair também sobre o património comum, ampliando a responsabilidade financeira e a Massa Insolvente. Já no Regime de Separação de Bens, cada um dos cônjuges é responsável apenas pelos seus bens e dívidas, salvo se tiverem assinado obrigações solidárias ou fianças (fidejussão).
2.2. Dívidas Conjuntas vs. Dívidas de um Só
- Dívidas Conjuntas: Quando os dois assinam conjuntamente um contrato de crédito (por exemplo, um empréstimo à habitação), ambos respondem solidariamente, podendo a insolvência envolver bens de ambos.
- Dívidas Particulares de um Cônjuge: No regime de comunhão, mesmo dívidas de um só podem afetar parte do património comum, conforme as regras de meação. Se for separação de bens, apenas o cônjuge devedor é responsável, embora existam nuances sobre rendimentos do agregado ou património em comum.
3. Como se Apresentar à Insolvência
3.1. Requerimento Conjunto ou Individual
Se o casal entende que a melhor via é a declaração de insolvência, pode:
- Requerer Insolvência em Conjunto: Se ambos acumulam dívidas comuns ou reconhecem que o património está todo interligado, podem apresentar um único requerimento de insolvência, declarando-se mutuamente incapazes de saldar as obrigações.
- Processos Separados: Cada cônjuge pode apresentar o seu próprio processo, especialmente se existir separação de bens ou se as dívidas não forem propriamente conjuntas. Mesmo assim, o tribunal pode decidir apensar os processos para evitar decisões contraditórias e simplificar a liquidação.
3.2. Documentação Necessária
Em ambos os casos, é fundamental apresentar:
- Identificação completa de cada cônjuge.
- Regime de bens adotado no casamento (certidão do registo civil ou escritura antenupcial).
- Listagem exaustiva das dívidas (bancárias, fiscais, familiares, etc.).
- Relação de bens móveis, imóveis e saldos bancários em nome de cada um, além do património comum.
- Comprovativos de rendimentos (declarações de IRS, recibos de vencimento, etc.).
O tribunal analisará se efetivamente não há forma de saldar ou renegociar as dívidas sem a abertura do Processo de Insolvência.
3.3. Papel do Tribunal e Administrador de Insolvência
Ao aceitar o requerimento, o tribunal:
- Nomeia um Administrador de Insolvência que passa a gerir o património e a representar os cônjuges em certos atos de disposição.
- Declara aberta a fase de verificação de créditos, notificando os credores para reclamarem.
- Se não houver acordo (por exemplo, um Plano de Pagamentos), procede-se à liquidação dos bens comuns e, consoante o caso, também dos bens próprios de cada cônjuge.
4. Massa Insolvente do Casal
4.1. Bens que Integram a Massa
Quando se decreta a insolvência pessoal do casal, a chamada Massa Insolvente inclui:
- Bens comuns, conforme o regime de comunhão geral ou de adquiridos.
- Bens próprios de cada cônjuge, salvo se forem impenhoráveis (ferramentas de trabalho, mobiliário básico, etc.).
- Participações financeiras e créditos em nome de qualquer um dos dois.
- Rendimentos acima do mínimo de subsistência, se estiver em causa a exoneração do passivo restante.
4.2. Separação de Bens e Responsabilidades
Se vigorar a separação de bens, cada cônjuge tem a sua Massa Insolvente individual. Os bens comuns praticamente não existem neste regime, exceto se tivessem adquirido algo em copropriedade e assinado as dívidas conjuntamente. Nesse caso, uma parcela do bem poderia entrar na massa de cada um conforme a sua quota.
4.3. Dificuldades de Identificação
É comum surgir dúvida sobre a titularidade de certos bens (por exemplo, se foram comprados antes do casamento, mas com recursos comuns). O Administrador de Insolvência investiga a origem de cada ativo para determinar se integra ou não a massa. Caso haja litígio sobre a pertença de determinados bens, o tribunal resolve essa questão com base em documentos e testemunhos.
5. Consequências para o Património e Dívidas
5.1. Liquidação dos Bens
O Administrador de Insolvência pode vender imóveis (habitação, terrenos), veículos, saldos bancários e outros ativos, aplicando o valor obtido no pagamento aos credores. Se se tratar de bens comuns, uma parte do produto (a meação) reverte para a massa de cada cônjuge, salvo se ambos estiverem no mesmo processo. A gestão torna-se mais simples se estiver reunida num único Processo de Insolvência de casal.
5.2. Responsabilidade Solidária
Nas dívidas solidárias, cada cônjuge é responsável pela totalidade do débito, podendo o credor exigir tudo de um só. No Processo de Insolvência, isso significa que se o bem comum for liquidado, mas ainda restarem dívidas, o património próprio de cada um (exceto o impenhorável) pode ser igualmente executado.
5.3. Contas Conjuntas
Quando os cônjuges têm conta bancária conjunta, o saldo pode entrar integralmente na massa, sendo mais complexo distinguir qual parcela pertenceria individualmente a cada um. Se houver provas de depósitos separados, pode-se tentar segmentar, mas é frequente que todo o valor seja considerado comum.
6. Proteção da Habitação Própria
6.1. Habitação de Família
Mesmo no contexto de insolvência pessoal do casal, não há uma proteção absoluta da casa de morada de família. Em dívidas garantidas por hipoteca, o imóvel pode ser penhorado. Em outras dívidas, porém, podem existir regras específicas que dificultam a venda da habitação principal, dependendo da legislação em vigor. Ainda assim, não é garantia que fiquem a salvo, pois no regime de comunhão, a casa é tipicamente um bem comum.
6.2. Renegociação ou Plano de Pagamentos
Antes de perder o imóvel, o casal insolvente pode propor um acordo ou renegociação aos credores (por exemplo, Plano de Pagamentos no Processo de Insolvência), tentando manter a habitação. Se o tribunal e a maioria dos credores aprovarem, é possível evitar a liquidação forçada.
7. Exoneração do Passivo Restante e o Casal
7.1. Pedido Conjunto de Exoneração
A Exoneração do Passivo Restante permite, a quem cumpre um PERíodo de cessão (3 a 5 anos) e age de boa-fé, libertar-se das dívidas que não foram pagas com a liquidação. Quando se trata de um casal insolvente, cada cônjuge deve preencher os requisitos (não ocultar bens, não contrair novas dívidas injustificadas) para conseguir esse “perdão” final. Se ambos fazem parte do mesmo Processo de Insolvência, cumprem obrigações em paralelo.
7.2. Rendimentos de Cada Cônjuge
Durante o PERíodo de cessão, o Fiduciário (ou administrador) verifica quanto cada insolvente aufere e determina quanto deve ser entregue mensalmente. Se ambos trabalham e têm rendimentos, cada um contribui consoante o que exceda o mínimo de subsistência. O sucesso na exoneração depende também do rigor no cumprimento das obrigações.
7.3. Consequências em Caso de Violação
Se for detetada má-fé (por exemplo, ocultação de um bem ou manipulação do vencimento), o tribunal pode recusar ou revogar a exoneração para um ou ambos os cônjuges. Isso mantém as dívidas pendentes, sem o alívio final.
8. Alternativas à Insolvência
8.1. Renegociação de Créditos
Antes de avançar para um Processo de Insolvência conjunto, o casal pode tentar:
- Consolidação de dívidas num só crédito.
- Alongar prazos ou reduzir taxas com o banco.
- Negociar diretamente com credores (p.e., cartões de crédito, contas em atraso) para eliminar juros de mora.
Muitas vezes, as instituições preferem reaver parte do capital a enfrentar a morosidade de um Processo de Insolvência, oferecendo condições mais flexíveis.
8.2. Mediação Familiar ou Financeira
A mediação, em parceria com associações de defesa do consumidor (como a Deco Proteste), pode ajudar a reorganizar o orçamento familiar, evitando o recurso extremo à insolvência. Contudo, se a dívida for muito superior à capacidade de pagamento mensal do casal, a viabilidade da mediação é limitada.
8.3. Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP)
Os cônjuges podem intentar o PEAP quando ainda não estão formalmente em insolvência, mas desejam um acordo coletivo com todos os credores. Suspende-se a maioria das execuções enquanto decorrem negociações sob supervisão judicial. Se o plano for aceite, evita-se a insolvência formal.
9. Divórcio e Insolvência: Intersecção de Problemas
9.1. Separação e Património
Um casal prestes a divorciar pode ainda estar sobre-endividado. Se pedirem a insolvência antes do divórcio, a Massa Insolvente englobará os bens comuns. Caso se divorciem antes, procede-se à partilha de bens, mas a lei pode invalidar atos destinados a fugir de credores (ex.: atribuir todos os bens a um cônjuge, sem justa causa).
9.2. Responsabilidade pelas Dívidas
Mesmo após o divórcio, se as dívidas foram contraídas em comunhão de bens ou em regime de responsabilidade solidária, ambos continuam responsáveis. O facto de se separarem não apaga a obrigação assumida em conjunto, podendo o Processo de Insolvência prosseguir como estava.
9.3. Estratégias para Evitar Agravamento
Se o casal tenciona divorciar-se mas tem dívidas consideráveis, é crucial consultar aconselhamento jurídico para escolher a ordem dos acontecimentos (pedido de insolvência antes ou depois do divórcio), evitando conflitos ainda mais complexos.
10. Perguntas Frequentes (FAQ)
1. Podemos apresentar um único Processo de Insolvência, mesmo tendo regimes de bens diferentes?
Em princípio, cada devedor insolvente apresenta o seu processo. Contudo, se for vantajoso e houver dívidas conjuntas ou património partilhado, pode-se pedir a apensação dos processos, agilizando as etapas. Se os regimes de bens forem totalmente distintos (p.e., separação de bens), cada um terá a sua própria Massa Insolvente, mas o tribunal pode tratar conjuntamente certas decisões.
2. E se só um cônjuge estiver insolvente, o outro pode ficar de fora?
Sim. Se apenas um contraiu dívidas significativas ou se o Regime de Separação de Bens garante que o outro não é responsável, só um cônjuge pode requerer a insolvência. Porém, há que distinguir se, nas dívidas particulares, o património comum não foi afiançado. Em comunhão de adquiridos ou geral, parte desse património pode estar em risco.
3. A casa onde moramos é penhorada automaticamente se estivermos ambos insolventes?
Depende. Se existir hipoteca associada e a dívida for grande, é provável que o imóvel entre na Massa Insolvente. Caso não exista garantia real, o administrador avaliará se é viável ou vantajoso vender a casa para pagar credores. Ainda assim, existem leis que dificultam a penhora da habitação principal em dívidas de consumo, mas não há uma proteção absoluta.
4. O que acontece se um cônjuge oculta bens sem o outro saber?
A ocultação de bens é considerada má-fé e pode levar à recusa da Exoneração do Passivo Restante. Se um cônjuge for conivente ou se beneficiar da ocultação, ambos podem sofrer consequências no processo. A honestidade e a transparência são cruciais para obter a exoneração final.
5. Podemos partilhar os bens antes e depois declarar insolvência para proteger algum ativo?
Não é lícito. Qualquer partilha que tenha como objetivo afastar bens dos credores pode ser anulada pelo tribunal (resolução em benefício da Massa Insolvente). O administrador pode reverter doações ou vendas subavaliadas feitas nos meses anteriores à insolvência.
11. Boas Práticas e Recomendações
- Diagnóstico Financeiro Conjunto: Antes de avançar com a insolvência, o casal deve calcular com rigor todas as dívidas e rendimentos, projetando se existe solução extrajudicial (renegociação, consolidação de créditos, etc.).
- Consulta a Especialistas: Advogados ou associações de consumidores (DECO, por exemplo) podem orientar sobre qual a melhor forma de apresentar o pedido de insolvência (conjunto ou separado) e evitar nulidades.
- Transparência no Regime de Bens: Identificar claramente o regime de bens para saber quais ativos pertencem em comum, evitando surpresas como a penhora de algo que se julgava ser apenas de um cônjuge.
- Planeamento Antecipado: Se houver risco iminente de incumprimento, é preferível procurar soluções cedo, evitando a penhora de bens essenciais ou a escalada de juros e comissões.
- Foco na Exoneração: Se o casal pretende obter Exoneração do Passivo Restante (só possível para pessoas singulares), deve cumprir as obrigações de colaboração e não contrair dívidas injustificadas durante o PERíodo de cessão.
12. Cenários Exemplificativos
12.1. Comunhão de Adquiridos e Empréstimo Habitação
Um casal em comunhão de adquiridos tem um empréstimo para casa, ambos como mutuários. Se ficam desempregados e não pagam, o imóvel pode ser vendido na insolvência, liquida-se a dívida hipotecária, e eventuais valores remanescentes pagam outros credores. Caso não cubra tudo, podem pedir exoneração do passivo, assumindo obrigações durante o PERíodo de cessão.
12.2. Separação de Bens, Dívidas de Cartão de Crédito Só de Um
Se um cônjuge acumula dívidas significativas em cartões de crédito, sem envolver o outro (que não coassinou e não beneficiou diretamente), o seu património pessoal é executado na insolvência. O outro cônjuge, tendo Regime de Separação de Bens e não participando nas dívidas, mantém os próprios bens fora da Massa Insolvente.
12.3. Divórcio em Curso e Dívidas Conjuntas
O casal inicia um processo de divórcio, mas têm dívidas conjuntas resultantes de crédito ao consumo. Podem requerer insolvência conjunta antes da partilha oficial. Se o divórcio sair no decurso do Processo de Insolvência, a Massa Insolvente abrange ainda os bens comuns até final da liquidação, pois não se pode “apagar” as obrigações solidárias prévias.
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