Em Portugal, embora a lei permita a execução de bens do devedor para pagamento de dívidas, existem categorias de património consideradas bens impenhoráveis. Essas proteções legais visam preservar a dignidade do devedor e garantir que continue a dispor do mínimo necessário para viver ou exercer a sua profissão. A seguir, analisam-se os vários tipos de bens impenhoráveis, o enquadramento jurídico e as implicações práticas para credores e devedores.

1. Enquadramento Legal e Conceito
1.1. O que Significa “Bens Impenhoráveis”?
Bens impenhoráveis são aqueles sobre os quais não pode recair penhora para satisfazer dívidas. Ou seja, mesmo que exista um processo de execução ou insolvência, esses bens não podem ser expropriados e vendidos para pagar credores. A razão fundamental é evitar que o devedor seja colocado numa situação de carência absoluta ou impedido de exercer a sua atividade profissional.
1.2. Base Jurídica em Portugal
O Código de Processo Civil (CPC) identifica, em vários artigos, quais os bens que não podem ser penhorados em processos executivos comuns. Além disso, a Constituição da República Portuguesa garante direitos e garantias fundamentais, que servem de base à ideia de proteger o mínimo de subsistência do devedor.
Relação com Insolvência
No caso do Processo de Insolvência, os bens impenhoráveis também ficam fora da Massa Insolvente, não podendo ser liquidados pelo Administrador de Insolvência para pagamento de dívidas. Isto assegura que o devedor mantenha os meios essenciais para sobreviver e, se aplicável, para retomar a vida económica após a exoneração do passivo restante.
2. Finalidade de Proteger a Dignidade e Subsistência
2.1. Princípio da Dignidade do Devedor
O legislador entende que, mesmo em situação de incumprimento, o devedor deve manter:
- Bens indispensáveis à vida pessoal e familiar.
- Ferramentas de trabalho para continuar a exercer a sua profissão.
- Recursos mínimos para não cair em pobreza extrema ou marginalização social.
2.2. Equilíbrio entre Credor e Devedor
Ao passo que o credor tem direito a satisfazer o seu crédito, a lei limita a execução de bens para que esse direito não atropele a dignidade humana. É uma lógica de proporção: não se pode sacrificar tudo para a cobrança de dívidas, nomeadamente quando isso inviabiliza a sobrevivência básica do executado.
3. Tipos de Bens Impenhoráveis segundo o Código de Processo Civil
3.1. Artigos de Uso Pessoal ou Familiar Essencial
Um conjunto de objetos e utensílios sem os quais o devedor não conseguiria levar a vida quotidiana. Exemplos clássicos:
- Vestuário, calçado, roupa de cama.
- Mobiliário indispensável (cama, mesa, cadeiras).
- Utensílios de cozinha fundamentais (panelas, pratos, talheres).
- Eletrodomésticos básicos como frigorífico, fogão ou placa de cozer (essenciais à confeção e conservação de alimentos).
Limites de Valor
Se, no entanto, o devedor tiver objetos de valor elevado que cumpram essas funções — por exemplo, um frigorífico de altíssimo custo —, o tribunal pode avaliar se é adequada a substituição por um modelo mais simples, desde que não se ponha em causa a funcionalidade básica.
3.2. Ferramentas de Trabalho de Baixo Valor
Se o devedor exerce atividade profissional autónoma ou necessita de equipamentos para o trabalho (por exemplo, um computador para um designer, uma caixa de ferramentas para um canalizador, utensílios de cabeleireiro), podem ser classificados como bens impenhoráveis desde que:
- Sejam indispensáveis à profissão ou à subsistência profissional.
- Não tenham valor comercial elevado que permita a substituição por equivalentes mais modestos.
Exceção
Se se tratar de bens de luxo ou dispendiosos (por exemplo, uma máquina industrial de grande porte ou um equipamento topo de gama), podem ser penhorados se a lei entender que não é razoável mantê-los intocáveis para o devedor, existindo alternativa mais económica que cumpra a mesma função.
3.3. Objetos de Culto ou Religiosos
Alguns bens ligados ao exercício religioso, como imagens e objetos sagrados, podem ser reconhecidos como impenhoráveis. O intuito é respeitar a liberdade de consciência e evitar ferir convicções espirituais. Contudo, é raro que tais objetos sejam avaliados com alto valor comercial, a menos que se trate de arte sacra valiosa.
3.4. Alimentos e Subsistência
Alimentos armazenados, essenciais à alimentação do devedor e família, não podem ser alvo de penhora. O mesmo se aplica a subsídios públicos ou prestações sociais destinadas à satisfação de necessidades básicas, embora existam nuances dependendo do regime de crédito.
4. Impenhorabilidade de Bens Imóveis em Certas Situações
4.1. Habitação Própria e Permanente
Embora a lei preveja a penhora de imóveis, em Portugal existem regimes especiais de proteção à habitação própria e permanente (por exemplo, limitações à penhora em dívidas de consumo). No entanto, a casa de morada de família não é automaticamente impenhorável. Em dívidas hipotecárias, o banco pode executar o imóvel. Mas noutros tipos de dívidas, há proteções legais que restringem a execução.
Requisitos para Proteção
- Que o imóvel seja efetivamente a residência principal do devedor.
- A legislação específica pode exigir que a dívida não esteja associada diretamente ao imóvel (p.e., hipoteca).
- A penhora de habitação principal em dívidas fiscais pode ser limitada, mas não totalmente excluída, dependendo das regras em vigor.
4.2. Casos de Usufruto ou Servidões
Se o devedor detiver apenas um usufruto (direito de uso) e não a propriedade total, pode haver limitações à penhora, pois a lei analisa a utilidade desse direito e se ele é transmissível ou penhorável sem prejudicar indevidamente a finalidade do usufruto (por exemplo, habitação de pessoa idosa).
5. Remunerações e Subsídios Impenhoráveis ou Parcialmente Penhoráveis
5.1. Salários e Pensões: Mínimo Existencial
A lei impõe um montante intocável sobre o vencimento do devedor, conhecido como mínimo de subsistência ou mínimo existencial. Assim, a Penhora de Vencimento não pode deixar o executado com menos do salário mínimo nacional (ou quantia similar estabelecida por lei) para se manter. Dessa forma, parte do rendimento salarial é impenhorável.
Exemplos
- Se o salário for de 900€ e o salário mínimo estiver em 760€, apenas 140€ podem ser objeto de penhora, respeitando ainda limites percentuais.
- Em algumas dívidas específicas (por exemplo, Pensão de Alimentos em atraso), os limites podem ser mais flexíveis, sempre considerando a proteção mínima do devedor.
5.2. Subsídios de Doença, Desemprego ou Acidentes
Em regra, prestações como subsídio de desemprego, subsídio de doença ou indemnizações por acidentes de trabalho podem ser, total ou parcialmente, impenhoráveis. Isto garante que o executado em situação de fragilidade não fique sem qualquer amparo.
Exceções
Algumas dívidas, como as resultantes de alimentos, podem permitir a penhora de parte destas prestações, respeitando sempre um limite de subsistência.
5.3. Bolsas de Estudo e Apoios Sociais
O valor recebido a título de bolsa de estudo para estudantes, ou apoios à inclusão social (RSI), é na sua maioria protegido de penhora, pois destinam-se a finalidades específicas que não podem ser desviadas para pagamento de dívidas.
6. Distinção entre Impenhoráveis Absolutos e Relativos
6.1. Bens Absolutamente Impenhoráveis
São aqueles que nunca podem ser penhorados, independentemente do tipo de dívida ou circunstância. Por exemplo:
- Roupas e objetos de uso pessoal.
- Ferramentas de trabalho de reduzido valor.
- Subsídios estritamente destinados à sobrevivência.
6.2. Bens Relativamente Impenhoráveis
Podem ser penhorados em certas situações específicas. Exemplo: uma viatura pode não ser penhorável se for o único meio de transporte do devedor para o trabalho e tiver valor comercial baixo. Mas se for um carro de alto luxo, a penhora pode avançar.
Outro exemplo: parte do vencimento acima do mínimo existencial é penhorável (por ser “relativamente” protegido até certo limite).
7. Como a Lei Interpreta Casos de Bens de Valor Elevado
7.1. Substituição por Bens Mais Simples
Se o bem essencial (por exemplo, um computador) for excessivamente dispendioso, o tribunal pode autorizar a penhora e posterior substituição por um modelo de custo acessível, garantindo que o devedor não fica privado da função do objeto, mas também não retém um item de luxo que poderia satisfazer parte da dívida.
7.2. Enfoque na Função
O critério costuma ser a função do bem para a subsistência ou exercício profissional. Se a despesa ou valor for desproporcional, considera-se que não cabe na proteção “mínima” estabelecida pela lei.
8. Bens Impenhoráveis no Contexto de Insolvência
8.1. Massa Insolvente e Exceções
Na insolvência pessoal, a Massa Insolvente abrange todos os bens do devedor, exceto os que a lei declara impenhoráveis. Deste modo, mesmo que o devedor não possa satisfazer as obrigações, os credores têm de respeitar os bens que ficam fora da liquidação. A distinção é igual à do processo executivo comum.
8.2. Administrador de Insolvência e Verificação
O Administrador de Insolvência analisa cada bem e, se identificar algo que seja essencial para a subsistência, retira-o da massa. O devedor, por sua vez, tem o dever de colaborar e indicar com clareza quais os bens que se enquadram nessa categoria.
9. Consequências de Violar a Impenhorabilidade
9.1. Nulidade da Penhora
Se um credor ou agente de execução penhorar um bem que a lei considera absolutamente impenhorável, o devedor pode apresentar reclamação ou oposição, levando o tribunal a anular o ato. O bem deve ser restituído ao devedor.
9.2. Responsabilidade do Credor ou Agente
Caso se comprove que o credor ou o agente de execução atuou de forma negligente ou de má-fé (por exemplo, penhorando bens claramente protegidos), podem incorrer em responsabilidade civil, obrigados a compensar prejuízos causados ao devedor.
9.3. Coação e Denúncia
Situações em que, por pressão ou desconhecimento, o devedor entrega voluntariamente bens impenhoráveis a um credor podem configurar coação. Se houver intimidação, o devedor pode denunciar, buscando restituição dos bens.
10. Perguntas Frequentes (FAQ)
1. O carro de família é sempre impenhorável?
Não. Um veículo pode ser penhorável se ultrapassar a necessidade básica do devedor (carro de grande luxo) ou se existirem outros meios de transporte disponíveis. Se for um carro de valor modesto e indispensável para o trabalho ou deslocação familiar, pode ser considerado impenhorável ou sujeito a substituição por outro de valor menor.
2. E se eu tiver dois frigoríficos ou duas máquinas de lavar?
Possivelmente, um dos itens pode ser penhorado, mantendo-se apenas um aparelho essencial. A lei protege a funcionalidade indispensável, não luxos ou duplicações supérfluas.
3. Ferramentas de trabalho: até que valor são consideradas impenhoráveis?
A legislação não define um teto exato. O critério é a razoabilidade e a proporcionalidade. Uma ferramenta comum de custo baixo e indispensável é geralmente impenhorável. Se, porém, a ferramenta for caríssima e tiver substituto mais simples, pode ser objeto de execução parcial ou substituição.
4. O banco pode penhorar a minha casa se eu não pagar o crédito pessoal?
Depende. Se não existir hipoteca nesse imóvel, o banco pode tentar a penhora, mas há regras específicas que protegem a habitação principal. Ainda assim, não é uma proteção absoluta: em muitos casos, a casa pode ser executada, a menos que a dívida e o imóvel entrem em regime legal de proteção (ex.: dívidas de consumo até certo montante, legislação temporária, etc.).
5. Um telemóvel de alto valor é impenhorável se o uso é para trabalho?
Se for comprovado que o telemóvel é ferramenta de trabalho essencial (e não apenas um aparelho de luxo), o tribunal pode declará-lo indispensável. No entanto, poderá determinar a substituição por modelo mais simples e vender o dispositivo de alto valor para satisfazer parte da dívida.
11. Dicas Práticas para Devedor e Credor
11.1. Para o Devedor
- Identificar com Clareza quais os bens indispensáveis à subsistência ou profissão.
- Comunicar ao Agente de Execução quais são esses bens e as razões da impenhorabilidade.
- Opor-se de Imediato se detectar penhora indevida, apresentando provas documentais (faturas, declarações médicas, registos de trabalho).
11.2. Para o Credor
- Evitar Atos de Má-Fé, dirigindo a execução apenas a bens penhoráveis.
- Verificar Substituições Possíveis (em caso de bens de luxo essenciais, propor substituição por equivalentes mais baratos).
- Consultar Sempre a Lei ou um advogado especializado quando houver dúvidas sobre a penhorabilidade de determinado bem, evitando nulidades e possíveis responsabilizações.
12. Cenários Específicos e Jurisprudência
12.1. Computador Pessoal de Alto Desempenho
Se o devedor trabalhar remotamente e necessitar de um PC de alta performance, mas este tiver valor de mercado elevado, o tribunal pode determinar a venda e a aquisição de um mais modesto, desde que cumpra a função profissional, canalizando a diferença para a dívida.
12.2. Equipamentos Médicos
Se o devedor possui um equipamento médico indispensável ao seu tratamento ou à sobrevivência (por exemplo, cadeiras de rodas, aparelhos de oxigénio), estes são absolutamente impenhoráveis. Qualquer penhora nesse sentido seria nula, configurando violação grave de direitos fundamentais.
12.3. Bens em Residência Partilhada
Caso o devedor resida com familiares ou terceiros, a identificação de bens pode ser complexa. Móveis e eletrodomésticos podem pertencer a outra pessoa da casa, devendo-se provar a propriedade para impedir penhora indevida.
13. Implicações Fiscais e Outras Execuções
13.1. Execução Fiscal
No processo fiscal, a Autoridade Tributária também deve respeitar a lista de bens impenhoráveis. No entanto, tem poderes acrescidos para identificar património e penhorar valores em contas bancárias. Ainda assim, mantém-se a impossibilidade de penhorar, por exemplo, o salário mínimo ou objetos de necessidade vital.
13.2. Execução de Pensão de Alimentos
Quando a dívida envolve Pensão de Alimentos, o tribunal prioriza a defesa dos alimentandos. Isso pode flexibilizar certas proteções do devedor, mas ainda se respeita um núcleo mínimo de dignidade.
13.3. Insolvência Transfronteiriça
Em casos de processos com elementos estrangeiros, a lei do Estado português aplica-se aos bens situados em Portugal. Se um bem estiver noutro país, a lei local pode ter regras diferentes sobre impenhorabilidade, o que complica a execução.
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